quarta-feira, abril 12, 2006

Voar, sempre Voar

Foto: CeciLia Cassal

Não entendo de dinheiro. Nada sei sobre mercado de capitais, finanças, investimentos, falências, insolvências, inadimplências e outros quetais. Não é nada radical, do tipo não-sei-não-quero-saber-e-tenho-raiva-de-quem-sabe. Simplesmente não faço muito esforço para movimentar-me entre cifras. (Tenho o que preciso e assim está bem). Há quem faça isso com muito mais propriedade.

Dito isso, considero-me eximida da necessidade de qualquer análise sócio-econômica sobre o que vou falar. Sustento-me pela memória, que na minha idade já é o que de melhor há de se possuir. Nascida em um quarto de paredes verde-bandeira brilhante da grande casa de paredes de tábua dupla, a primeira coisa que ouvi foi o ruido metálico de algum instrumento sendo jogado pela parteira Dona Maria na bacia de cobre aos pés da cama onde minha mãe, ajudada pela irmã, ainda se livrava de outros restos das nove luas gestadas. A segunda coisa que ouvi foi o pi-pi-pi do rádio-telégrafo que meu pai operava na sala ao lado. Mais tarde, seria alfabetizada primeiro em código Morse.

De coisas significantes ao que vou contar, o primeiro presente, uma boneca de curtos cabelos louros, com boina azul-marinho e traje de aeromoça (na época não se dizia comissária) com estrelas prateadas de quatro pontas nas lapelas. Mais tarde, a notícia da morte em seus primeiros significados, através de um avião cujos destroços fariam parte durante anos da decoração do quintal da grande casa. Nas loucas ventanias de primavera, as antenas de rádio entortando-se sobre os telhados, a igreja com um São José e o Menino no colo sobre a torre sendo destelhada...

O pai falando da leitura dos barômetros e o significado dos cirros no céu, ensinando sobre as direções dos ventos enquanto a mãe pedalava uma imponente Singer negra, à custa de costurar rotas birutas. O sol no capim do campo deitando no vento e o brilho metálico das asas dos pequenos aviões, o cheiro do querosene colando nas narinas, as luzes laterais da pista de pouso, o ronco das hélices giradas pelas mãos fortes dos homens para movimentar os motores das naves que nos levavam por sobre as lagoas, na primeira visita à capital. As capivaras na lonjura da cabeceira da pista, lá onde não podíamos aventurar-nos sozinhas, minha irmã e eu, os quadros que atestavam uma vida funcional honrada aos dez, quinze, vinte anos de trabalho enfeitando as paredes da sala de receber tripulantes.

Um dia, o campo de pouso limitado pelas pequenas casas da vila nos entornos, a empresa encerrou as atividades no Rio dos Ameandros. Naquele ano e nos seguintes, muitas vezes ouvíamos, noite alta, o ronco dos motores dos aviões que - não encontrando visibilidade para pousar na capital - precisavam pernoitar ali até clarear o dia ou findarem as tempestades. Nestas noites, saíamos pela pequena cidade convocando os poucos automóveis que existiam para iluminar a cabeceira da pista e possibilitar a aterrisagem. Depois, era mãe desfazendo-se em gentilezas, preparando camas de campanha, sopas, distrações.

Mudam os tempos, loteia-se o campo de pouso e aquinhoa-se a infância. Guardam-se seus pedações em escritos, fotografias, pedaços de asas, brevês, decolagens e voltas tantas. Hoje nós, que por muito tempo fizemos parte da grande família da Varig, esperamos decisões judiciais que arbitrem sobre o passado e o futuro. Será que algum juíz neste mundo sabe o que significa ter nascido num campo de pouso? Crescido num aeroporto? Empinado pandorgas pela mão do pai em um campo de aviação? Será algum dinheiro neste mundo capaz de devolver aos olhos dos velhos telegrafistas, pilotos, comissários, técnicos, mecânicos, guarda-campos, o orgulho e a dignidade do trabalho de fazer voar?

14 comentários:

Warum Nicht? disse...

quanto vale uma emoção?

Anônimo disse...

Ninguém tira estes sentimentos, só quem viveu isto sabe seu valor, talvez um dia enxerguemos a importância dos sentimentos e emoções verdadeiras.

Anônimo disse...

Ninguém tira estes sentimentos, só quem viveu isto sabe seu valor, talvez um dia enxerguemos a importância dos sentimentos e emoções verdadeiras.

Anônimo disse...

Gostei muito da foto, me traz ótimas lembranças.
Bjs

Claudio Eugenio Luz disse...

O tempo é um verdadeiro tufão - soprado por agentes nada naturais.

hábeijos

claudio

Anônimo disse...

também eu, cecília, eximo-me de opinar sobre o que deve ou não ser feito com a varig. solidarizo-me com a tristeza da situação. ótima páscoa pra vc e pros seus. 1 beijo

marcia cardeal disse...

Também tenho me perguntado quanto custa um vôo de sanhaço, de tucano, de surucuá...enquanto por aqui retalham nosso lugarzinho de morar, com enormes máquinas de engolir sonhos... Que lindo teu texto...!!!um beijo.

Edilson Pantoja disse...

Além de tudo a que diz respeito, é primorosamente belo. Agradável!
Parabéns por ele!
Abraço!

Vítor Leal Barros disse...

crescer num campo de aviação...que bonito...mas parece que não é o fim...a TAP vai dar uma ajuda na Varig, ouvi dizer


um beijo

Anônimo disse...

qualquer assunto, se escrito por você, como num toque de mágica, se transforma em poesia e da melhor qualidade. belíssimo texto. beijos

Dinamene disse...

Cecília, uma delícia (o texto). A situação deve ser difícil. Fiz um link para você.
Abraço.

Ivã Coelho disse...

Voar, sempre voar, e de braços esticados.

Beijos e bom inicio de semana.

Ricardo disse...

Ah, linda. Saudades das tuas linhas, cada vez mais belas.

Meu sobrinho nasceu. (Áries, Asc em Escopião e lua em touro).

2,750 e 47 cm

Bjs.

Dalva M. Ferreira disse...

Estrela brasileira num céu azul
Iluminando de norte a sul
Mensagem de amor e paz...


Eu não tenho grandes esperanças... o juiz pode até ter coração mas há que considerar as "forças ocultas"...