segunda-feira, novembro 21, 2011

Umas coisas desse tempo, João

João,

É tanto o tempo em que não dou notícias e que deixo o Rio aos seus cuidados, que sequer atrevo a desculpar-me. Quase sempre converso com Helga ao telefone e peço a ela que - como um código cifrado de bem-querença - espalhe sobre seu mate umas flores pequenas de maçanilha, como os que preparaste para mim nas inúmeras manhãs que silenciamos juntos no Rio dos Ameandros. Com Helga, trato das coisas práticas, como não pode deixar de ser às mulheres, mas sinto tua falta, João, quando preciso ser sabida na melhor forma das cumplicidades tácitas.

Mas deixei o rancho por esse tempo que não é longo nem é breve, apenas o justo, para que as coisas se acomodassem e eu pudesse novamente estar entre vocês e pudesse pensar em revelar as coisas lentamente, conforme as demoras no amadurecimento dos frutos do pomar que sei florido, nessa primavera. Deixei-os como quem não pode - por impossibilidade real ou pensada - abraçar a um amor a quem muito se quer: o afastamos com durezas e silêncios e, quando o fazemos, sabemos que sofrerá durante um tempo e que depois reencontrará lugar melhor no mundo do afeto, não havendo nisso grandeza ou abnegação, não sendo marcado por lamento nem covardia, apenas necessidade, ou como quando batemos os pés no chão e ameaçamos com pedras a um cão que insiste em nos acompanhar pela rua e tememos pela sua sorte e não há - na pedra, nem na palavra ríspida, nem no silêncio, a cão ou a ser amado -, mais do que um ato de prevenção, assim foi minha ausência do rancho e de suas vidas: não por grandeza, repito, ou por egoísmo, tampouco por achar-me mais competente em cuidá-los ou cuidar-me do que quando o fazem, em suas minúcias de delicadezas e presença.

João, andei em muitos lugares e tenho pensado demais em vocês e nas coisas todas que fizeram com que acontecesse esse encontro. Pensei na minha responsabilidade diante de tudo e de - por conhecer fatos que vocês talvez apenas intuam sobre o passado recente que também lhes diz respeito - resolvi retornar ao nosso bom convívio. Levarei umas cartas e alguns pertences de teu irmão que ainda estão comigo e a ti, como presente (e um presente a ti, meu bom João, é quase como uma oferenda), uns livros que foram chegando e imediatamente me fizeram lembrar de tua avidez em ler e saber do mundo fora dos limites dessas montanhas e umas sementes de flores diferentes que, sei, encantarão à Helga. Não lhe conte, por favor, de minha chegada, que não é preciso nenhum preparo especial de casa ou comida e pretendo abraçá-la de surpresa, enquanto estiver na cozinha, em qualquer dia de manhã bem cedo, quando tiveres saído para as bandas do rio e que os labradores, ao te acompanhar, não possam perceber a minha chegada.

Até breve, João.

(Texto: Cecilia Cassal - Imagem: Cecilia Cassal, Ollantaytambo, Peru)

5 comentários:

Cláudio B. Carlos disse...

Belíssimo texto!

Beijos.

douglas D. disse...

poesia há
em ti.

Dalva M. Ferreira disse...

E aí? Queremos mais... seja generosa!

- disse...

Lindo João, linda carta, linda Helga. Gostei muito, muito mesmo.

aprendia disse...

Ai.....que LINDO!!!! Amei encontrar teu blog !!!

Vera